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quarta-feira, novembro 12, 2008

O Dedo na Ferida

Post de Valupi em Aspirina B (aspirinab.com)

"Atribuir notas e avaliar são duas actividades diferentes, não necessariamente relacionadas. Eu saí do ensino nos finais de 90, entre outras razões, porque os alunos não eram avaliados. As reuniões de avaliação eram, isso sim, veículos para o preenchimento das pautas. Estive em cinco escolas, onde leccionei Filosofia, Psicologia e Psicossociologia a alunos do 10º, 11º e 12º: Escola Secundária da Moita, Escola Secundária de Linda-a-Velha, Escola Secundária Ferreira Borges, Escola Secundária Alves Redol e Escola Secundária Professor Herculano de Carvalho (nesta sequência). Licenciatura com Via de Ensino, estágio feito, dezenas de turmas e centenas de reuniões depois, posso não ter autoridade para falar em nome da classe dos professores, mas tenho autoridade para falar da falta de classe de alguns professores com quem partilhei os intervalos, participei em actividades, acompanhei em excursões, fui almoçar e jantar, criei amizade e me reuni vezes sem conta para realizar essa apaixonante e nobilíssima missão: ensinar numa escola pública.

Se há pessoas maravilhosas a dar aulas? Ignotos santos, heróis e sábios? Sim, muitos. Milhares. Olha, há milhares e milhares de professores portugueses, em escolas públicas portuguesas, que são anónimos, humildes e sacrificados santos, heróis e sábios. Sim, há. Aos milhares e milhares. Mas agora puxa uma cadeira e vamos falar um bocadinho dos outros.


Invariavelmente, com diferenças apenas relativas ao grau de confiança que eu tivesse adquirido nesse dado grupo e escola, as reuniões de Conselho de Turma de final de ano obedeciam a um acordo tácito para que se chumbasse o menor número de alunos que fosse possível. Isto não está errado em si, e tem variados contextos e pretextos, a começar pela própria natureza de um balanço final e ponderação do futuro dos estudantes. O que desafiou a minha responsabilidade foi constatar como essa bondade teórica estava pervertida pela prática. Uma prática que é imune a qualquer suspeita, pois se furta a toda e qualquer aferição – qual é a família que vai protestar contra uma nota positiva, contra a passagem de ano de alunos medíocres e maus?… Com professores experientes, ou já com anos de convívio, o processo não levantava qualquer suspeita. Eu não o teria descoberto, ou não tão cedo, caso não aparecessem também aquelas situações em que um aluno com 5 negativas, por exemplo, acabava com duas depois de umas voltas no carrossel da avaliação. A questão era posta muito pragmaticamente: qual dos professores podia subir a nota? Este momento tinha um singular encanto, pois o processo teria de levar poucos minutos – sendo que nalguns casos levava segundos. As pessoas olhavam para os seus papéis, ou para o tecto, como se estivessem à procura de migalhas da nota caídas nas entrelinhas ou perante uma conta de dividir mais complicada. Exibia-se, ou simulava-se, teatral relutância, a derrota tinha um preço medido em insistências. Com professores armados em professores, ou ainda não adaptados, ou ingénuos, ou tontos, as situações podiam levar à exposição do que estava em causa: evitar chatices; isto é, não ter certos alunos a protestar, mais os seus encarregados de educação, mais a Direcção da escola, mais a eventualidade de aparecer um inspector do Ministério, situação esta em que estaria definitivamente o caldo entornado, pois todas as notas iriam ser vistas a pente fino por um estranho, o professor teria de as justificar muito bem justificadinhas e ainda, last but not least, vários dias de Verão iam para o galheiro, trocados por acaloradas reuniões na escola a ser-se julgado pelo Estado e pelo povo. Oh, quão melhor o júbilo de despachar os filhos da classe média e classe baixa pela encosta do sistema acima, satisfazendo tudo e todos, mais o cinismo de em nada se acreditar, e, portanto, já nada se defender. Outros que resolvam o problema de se atribuir mérito curricular a incapazes, dar aulas já é castigo suficiente. Ufa, férias. Longas férias.

A escola pública é o retrato fiel da sociedade, sim, claro, pois e tal, mas com este obrigatório apêndice: está nivelada por baixo. É refugio para preguiçosos, patarecos, maluquinhos, cobardes, tarados, bacocos, egoístas. Não surpreende que muitos professores se queixem das tarefas que lhes pedem, pois eles começam por se queixar dos papéis que têm de ler. É que muitos professores sofrem de iliteracia, não conseguem perceber certo tipo de linguagem, certos raciocínios mais complexos, certos fundamentos teóricos que não adquiriram porque nunca foram necessários para se estar fechado numa sala a tomar conta de crianças e depois, em certas datas, atribuir um número a cada uma. Na escola há gente desta, sempre houve, e milhões de portugueses os conheceram, geração após geração. São eles que criam o anedotário, mas são também eles que criam o ambiente depressivo que é típico do ensino em Portugal desde que há memória da democracia. Carne para o canhão dos generais sindicalistas, manipuladores da ignorância e do medo.

Estes professores não avaliam os alunos, porque avaliar é sinónimo de ensinar. Avaliar é algo que se faz continuamente, em qualquer interacção. Numa aula, acontecem incontáveis momentos de avaliação. Quando se elabora um teste, já muita avaliação foi feita. Depois, com esses resultados objectivados pelos critérios do teste, a avaliação continua na aula seguinte, agora melhorada pelo acréscimo de informação adquirida. Ora, este processo pode ser anulado pelo professor que diga ter alunos a mais. O que seja isso, o seu limite, poderá ser fronteira inescrutável. Para todos os efeitos, cada professor o saberá. Talvez num inquérito se descobrisse que a maioria dos professores gostaria de ter apenas duas turmas, com muito tempo livre para preparar as aulas. Mas então, porque aceitaram ter 5, 6, 7 ou mais turmas, e turmas de 30 alunos? Não sabemos, tal como não sabemos por que razão eles insistem em ser professores nessas condições. Mas vemos como os professores se vingam: tornam-se peças da engrenagem. Vão para as aulas repetir a sua lengalenga, tornam-se especialistas em não ter problemas, peritos em aproveitar as benesses do seu estatuto. Deliram-se aristocratas, adorando serem tratados por Senhora Doutora e Senhor Professor quando bebericam o café junto à plebe, e cultivam secreta e crescente repulsa pelas necessidades dos alunos cada vez mais incómodos, cada vez mais estranhos. As patologias depressivas florescem, os atestados multiplicam-se, a grande esperança é a reforma. Há mil e duas razões no bolso dos professores para justificarem a sua vil e apagada tristeza, todas a remeter para entidades exteriores à sua responsabilidade, à sua vontade, à sua liberdade. Como é óbvio, nunca tendo avaliado ninguém, estão apavorados com essa ameaça. E têm boas razões para isso.

Os falhados tomaram conta da escola. Muitos que tinham vocação e talento para o ensino, saíram ao longo dos anos ou nem lá entraram. Aos professores de vocação e talento que restam, milhares e milhares, este é o vosso momento. Que dizeis e quereis?"

5 comentários:

Anónimo disse...

Quem são os professores de vocação e talento? Os que ficaram em casa no dia 8? Confuso...

Teresa disse...

Não penso que a dicotomia seja essa...

Anónimo disse...

Tudo bem mais complexo!!!

Anónimo disse...

Olá Teresa!
A meio da tarde vim hoje,14/11, aqui (Colheita) e quando dei conta tinham passado três horas , em que andei visitando blogs , todos sobre a temática dos professores. É grande a variedade das intervenções ,posts e comentários, variadas as posturas numa transversalidade às profissões e estatutos dos intervenientes,tanto quanto é possível ver.Há textos de valor muito diferente e confesso que nunca tinha lido tanto nem tão variado material sobre este assunto.E vi que tinhas escrito uma anotação ao que eu escrevera na véspera. O texto em causa
começa bem ao estabelecer a distinção entre atribuir notas e avaliar.Mas logo se perde.Porque o que está em questão é a avaliação dos próprios professores e não dos alunos.E acaba numa exortação de tom propagandístico-revivalista que me trouxe à memória a famosa "maioria silenciosa" de 1974, só que agora personalizada numa minoria silenciosa de talento e vocação no âmbito de uma classe profissional.
O que o governo quer impor não é uma avaliação,é uma classificação em que coloca os professores na posição daqueles judeus prisioneiros nos campos de concentração onde desempenhavam funções de controle sobre os seus pares com delegação forçada do poder bastante para fazer o trabalho sujo que também assim lhes saía mais barato.O resto foram 120 000 pessoas nas ruas mostrando o seu enorme mal-estar , a sua indignação e a esperança que volte o bom senso aos doutos gabinetes .
Confusão e complexidade há às mãos cheias e a gosto do que se queira.A coberto desta desmesurada atenção dada à "avaliação", ficam no silêncio os novos Estatuto da Carreira Docente, a Gestão das escolas, o Estatuto do Aluno, que são parte do mesmo lote de preocupações que estão a perturbar a tranquilidade das escolas.
Numa valsa a dois tempos,1º: Quem semeia ventos colhe tempestades e, 2º: Depois da tormenta vem a bonança.
Um abraço.

Anónimo disse...

MC,estava a estranhar o teu,quase,silêncio sobre este assunto...

Médico poeta e louco,já sabíamos que todo o mundo tem um pouco..Surpresa,surpresa foi toda a gente começar a saber tudo sobre o novo ECD,filosofar sobre o que não sabe,e julga saber.
Uns conhecem um malandro dum professor que tem horário zero e ganha por inteiro..,conhecem outros que não fazem nenhum.,etc,etc.,outros até sabem como funciona o ensino pois há vinte anos deram aulas..enfim,como por aqui se diz "o falar vem dos queixos"!!!
Um abraço
GB