Hoje, convido-vos a lembrar (e a "navegar" numa pequena amostra da sua poesia) dois enormes (poetas) portugueses que morreram recentemente: Mário Cesariny de Vasconcelos e Fiama (em italiano, Chama) Hasse Pais Brandão.
Desta, diz Octávio Sérgio Azevedo no seu blogue Guitarra de Coimbra: "Preferiu a poesia ao palco, não no sentido do vero teatro, no qual também deixou obra de registo, mas no de uma atitude em que a poesia se basta a si mesma, e nisto tem a perene vitalidade que dispensa modismos de adrenalinas injectadas a gosto. Tão universal no princípio como no seu último verso, que fica sempre como mote para um recomeço de um breve fechar de pano. A vida bastou-lhe como afirmação."
Mas não deixou de intervir na nossa realidade colectiva. É dela este belíssimo poema de 1967, em tempo de guerra colonial, que todos conheceis cantado pela linda e límpida voz de Adriano Correia de Oliveira, e que glosa um outro poema - cantiga de amigo de João Zorro - dos primórdios da nossa literatura: Barcas Novas.
Barcas Novas
Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar deitadas com homens
Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas
Não lavram terras com elas
os homens que levam guerra
Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
Sobre Cesariny, transcrevo o que escreve Pedro Mexia no suplemento "6.ª" do DN, publicado pouco depois da sua morte e em sua homenagem: " Se o lirismo português tem sido muitas vezes plácido ou escapista, Cesariny usou um lirismo incomodativo, com o sublime e o escárnio convivendo ombro a ombro. (...) "Pastelaria" reabilita o real quotidiano contestando o real e o quotidiano. O poema está cheio de insolências, escandalizando os literatos (...) e os ideólogos (...). O real não é simplesmente o real que nos é dado, mas aquele que inventamos. Essa "realidade surrealista" nasce, como vemos, do protesto, de uma recusa em aceitar o leite azedo, como outros aceitam o seu triste quotidiano. (...)Em "Pastelaria" vejo ao mesmo tempo o gesto de quem abraça a realidade mas não se confunde com a realidade que existe. (...) E a ousadia maior é a que está no poema: não recusar o copo de leite mas protestar se o leite está azedo. É esse o riso admirável que devemos a Mário Cesariny."
PASTELARIA
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
Mário Cesariny de Vasconcelos, 1991
4 comentários:
Mas que maravilha !!! Quem sabe, sabe..
Teresa: Temas bem escolhidos e com
oportunidade.Gostei de relembrar.
Bartolomeu
Agora permite-me um "desabafo" não
é comentário."Barcas novas levam
gerra, era verdade ,As armas não
lavram terra,aqui é que está a dúvida.Que o diga eu que fiz a comissão na Guiné.Lavravam a terra e de que maneira.É só um desabafo
pois eu nesta matério prefiro o
silêncio(pois todos nós entendemos bem o poeta).
Viva, Teresa!
Entre o mandar e o ter medo importa rir: para que aquele se torne suportável ou para criar força e gritar que o leite está azedo?
Nós somos um país de poetas, não é? Entre os "grandes" portugueses
mantêm-se o Camões e o Pessoa e está salva a honra da pátria.Em fins de Outubro passado, Paul Auster recebeu o Prémio Príncipe dasAstúrias e disse ao discursar que o "valor da arte reside na sua inutilidade".Será? É por isso que
somos assim? M.
Manel, como sabes a Arte é polissémica e o Riso subversivo...(Hás-de ter lido "O Nome da Rosa" e visto o efeito devastador que teve, na campanha do Não, o sketch do Gato Fedorento Ricardo Araújo Pereira)
Por mim, de boa vontade me deixo seduzir por ambos, Arte e Riso, seja para exorcisar o medo, seja para "entornar o caldo".
Camões e Pessoa entre os grandes portugueses?! Pois...O pensamento "main stream" já os assimilou, esquecendo que ambos se fartaram de (com vossa licença) mijar fora do penico.
Quanto à inutilidade da Arte, também acho: é muito inútil! Mas que seria de nós sem REPRESENTAÇÔES????!!!!!
Manda sempre: gosto de conversar contigo.
Teresa
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