Dava a salvação a quantos encontrava, sem conversas ou deténs, sobretudo se fora só para entreter o tempo. Era por natureza, poupado e discreto; gastava pouco as palavras, tinha asma, era roliço e, normalmente, andava de sandálias, sem meias. Para conversar era outro cantar e isso “não se podia fazer, com estúpidos”, pois tinha um apurado sentido de humor: anticlerical, ateu e corrosivo para com os possidentes do poder ou da administração. Nascera numa aldeia vizinha, assentara praça num regimento de artilharia – ele ainda agora era um artilheiro possante! - e, depois de já ser furriel, viera de licença à terra para assentar e resolver a sua vida. Veio à Meimoa nas festas do S. Martinho em Agosto. Entre as moçoilas casamenteiras não foi difícil arranjar prometida e depois de pagar a patente – um almude de vinho – casara com a Quitéria – apenas pelo Registo do professor Barril, o que muito escandalizou o biatério! - e, de imediato, partiu para Lisboa. Com dona Quitéria, - assim se passou a chamar – já a esposa do sargento Maximiano Pires Ferreira, elegante e bem arroupada de bragal e dote, partiram de madrugada nas bestas para apanharem a carreira pra a estação do caminho de ferro em Caria, muito para lá da Senhora da Póvoa no Vale de Lobos, no apeadeiro do Terreiro das Bruxas. Nos novos tempos da República fez carreira no grupo de artilharia ligeira a cavalo de Campolide. Havia então quem dissesse tudo isto ter sido conseguido com os apoios da Carbonária. Com a Revolução do 28 de Maio as coisas mudaram e, muito para pior, quando chegou ao governo Salazar. Na revolta dos sargentos foi preso para o Aljube, dali para o Forte de Elvas e, anos mais tarde, para a reforma compulsiva na sua nova casa que entretanto construíra na Meimoa. A partir de então passou a ser só o senhor Ferreira; um Homem sério! Em terra de escravos da jeira e pequenos proprietários rurais, longe de tudo e de todos, entre estevas e serranias, organizou a sua nova vida ao lado de dona Quitéria que engordara muito naqueles anos em que não tiveram filhos. Comprou umas courelas junto à ribeira, para garantir as verduras e a fruta, meias encostas, para plantar a vinha para os gastos da casa e dos poucos amigos, para tais tarefas ajustava uns trabalhadores, familiares da esposa, e passou a aguardar serenamente que a estafeta do correio trouxesse espaçadas cartas e o jornal A República, que lia de fio a pavio. As amizades eram raras e bem escolhidas: o senhor Leitão, sargento como ele e vítima das mesmas purgas; o Zézinho Cameira, que regressara do Congo Belga; o professor Barril, maestro e representante do Registo Civil; o senhor Augusto, caçador e proprietário; o meu avô, porque tocava o harmónio e nada sabia de políticas, e, mais tarde o meu pai, que contava histórias, sobre a Guerra Civil de Espanha, e dos negócios do contrabando, do volfrâmio e das espanholas nos cabarets de Lisboa… Com o prior, o senhor padre Álvaro, cumprimento cerimonioso e, ponto final, parágrafo. Quando havia oportunidade de eleições ele encabeçava as listas da Oposição. Com o correr dos anos veio a rotina, uns quilos a mais e muitos mais para dona Quitéria, que mal se podia mover, e o azedar permanente do ódio a uma política que não mudava. No Verão, estendia uma manta farrapeira na adega, dormia a sesta e rebolando-se, desafogava em estridências sonoras, sem qualquer cerimónia, se calhar a relembrar os tempos da sua velha artilharia. Ao cair da tarde, quando as mulheres iam à fonte com os cântaros de barro à cabeça, vinham com uma certa regularidade umas freirinhas que, de porta em porta, pediam esmola em nome de Jesus e das Misericórdias. Bateram-lhe à porta da adega. O sujeito acorda e dá de caras com as ditas freiras: - Meu filho! Nós somos irmãs de Cristo… - Ena, c´um raio! Como estão bem conservadas!
Bernardino Louro
1 comentário:
Li com agrado o artigo publicado.
Da minha parte, é com satisfação
quando nos "visita",pelo que pode
vir mais veses se for possível.
Cumprimentos
B.Velho
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