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sábado, janeiro 13, 2007

A MENINA DANÇA

É dia de festa. Ao arrebol da alva, os foguetes e a música, vindos de fora, — por um dinheirão! — irrompem pelas estreitas vielas da aldeia, para assinalarem a alvorada. Os sinos, a repicar festivos no campanário da pequena igreja, anunciam a todos ser aquele o dia maior. Para que as festas ficassem assinaladas como as mais lustrosas nos arredores arraianos, não foram poupados nem esforços, por parte dos infatigáveis mordomos, nem economias foram feitas por todos os paroquianos.
O terreiro central da aldeia, enfeitado com caruma, urzes e alecrim, fora alisado e limpo, tendo sido montado nos últimos dias um coreto, onde a banda iria executar as marchas, as contradanças e as valsas, para o povo ouvir e a mocidade dançar.
Todos vestiam as melhores galas. As moçoilas, rosadas e a cheirar a sabão barato, de impecáveis saias rodadas e blusas de chita, tinham um lenço colorido a cair da cabeça. Estavam em grupo, entre risotas e segredinhos, esperando as contradanças e os convites para a “bailação”. Era a última oportunidade de encontrarem o prometido, num tempo em que ainda havia, na aldeia e nos arredores, homens casadoiros. A sangria da emigração viria anos mais tarde.
São moças pequenas de estatura, rudes, mas não feias. Tisnadas pelo sol e o frio, os olhares tristes, encobrem a timidez e as poucas letras, aprendidas a duras penas, nos minguados anos de escola. Como a mãe e as avós, arrastam uma vida de canseiras e trabalhos dobrados, em casa e ao jornal. Buscam na religião, sofrida, mas não entendida, fuga de frustrações ancestrais, onde o ir à missa ao domingo, mesmo com a cabeça tapada pelo xaile negro de todo o ano, é o facto mais relevante de uma semana, de todos os meses e de todos os anos.
Num grupo à parte, à volta de um cântaro de vinho e de um copo sebento, corrido de mão em mão, os rapazes, de cravo na orelha, chapéu à banda à fadista, e para que se veja o cravo, vestem calças pretas e camisas de gorgorão ou estopa. Riem com as toscas chalaças, fumam uns cigarros fortes, acesos ou apagados, ostentados nos queixos. Olham embasbacados para as moças, sempre as mesmas, fazendo projectos, mais ou menos sérios. Contrabandistas de toda a vida; um, exibe uma enorme boina basca, e o outro, um chapéu de copa baixa, à mazantino, que lhes assinala a diferença de gente muito viajada.
O Malina, de estatura meã e entroncado, tem a gorra descaída para os olhos, exibindo o seu ar de mau e a sua fama de notável caceteiro nas romarias das redondezas. O Manel Sacho é um palrador e um bailarino afamado, não tendo rival a cantar ao desafio. O Manelzinho da Casta-pequena, do alto do seu metro e vinte, ameaça esfaquear, — nas pernas! — quantos, dele queiram mangar. Juntos, miram, comentam e discutem com o Tó Primo, coveiro de profissão e profissional da “copofonia”, mais o Felisberto Cagalhoto, quase anão, e muito entendido ferrador de bois, cavalos, mulas e burros, exercendo ainda nas redondezas, de capador de porcos e outros animais que "s'astrevam a medir coletes " ou dele queiram caçoar.
Querem todos dar nas vistas a quem os conhece de ginjeira. Se não houver maior entretimento, lá terá de ser armado um valente arraial de pancadaria. De entre eles distinguem-se os irmãos Saldanhas, de alpergatas e calças de pana; são estes, cabos de ordem, o garante da ordem, e a certeza de que, se houver demanda, no tribunal, haverá ali duas testemunhas competentes e atentas. Os olhares reprovadores do Manuel Vicente, vigilante da moral, e do Mariozinho Côdeas, proprietário de uma taberna, ambos tementes a Deus e contando estórias e brejeirices, mais ou menos ordinárias.
Diziam as comadres serem eles "as duas maiores colatreiras do povo!" No improvisado coreto está a banda, sob a direcção de um desengonçado maestro, já de provecta idade; é mouco como uma porta, e está quase a cair da tripeça. Dirige a desgarrada. Todos os artistas têm da partitura uma interpretação muito pessoal. Arremetem contra sons e harmonias, dando só, em mínimas ocasiões, a ideia do autor, ou então, uma subtil semelhança com a peça que se propõem executar. Desde que haja muito barulho e chim-chim, chim-pum, é o suficiente para que as gentes simples se maravilhem e valsem alegremente, entre o troar dos foguetes.
Finalmente chega aos valentões a coragem para a arremetida às moçoilas. Há que fazer o convite à dança, ante os olhares sempre vigilantes das mães, comadres, primas e tias. Estas sancionam o convite e garantem que se cumpra a moral e se mantenham as distâncias no arrima. Ali não há lugar para poucas-vergonhas ou descarações de gente ruim.
Vêm então aos pares, os janotas. Fazem uma pequena vénia e, naquela voz rude, de quem trabalha de sol a sol e não tem tempo para a ternura, exclamam:
— Atão, a menina dança?A cachopa envergonhada, olha para todos os lados menos para o pretendente; ganha assim tempo para que a mãe diga, num gesto imperceptível, a última palavra. E surge a sacramental pergunta: — E vomecê tem lenço?Na verdade, aquelas mãos calejadas e rudes, postas nas costas da sua blusa, deixavam umas nódoas enormes e não há lavagem, saponaria ou barrela que as sare. O mocetão casadoiro exibe orgulhosamente, o enorme lenço vermelho, — dito tabaqueiro — ante a sua dama, agora muito mais sossegada. A mãe da dita cuja faz um pequeno gesto de assentimento com os olhos ou com a cabeça.Encarpelados e aos pinotes, como as cabritas lá na serra, saem ambos a valsar a marcha, triunfalmente mal tratada pela Música.
É festa na aldeia!

By Bernardino Louro

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bem. Gostei do artigo.
O Helder Barreira escolheu um bom
colaborador.
Bartolomeu