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segunda-feira, janeiro 08, 2007

A um Deus Maior

Minha Querida:

Passados já são tantos anos desde que interrompemos esta, tão nossa, maneira de comungar o tempo e a memória. É gostoso recomeçar!
Aconselho-te, querida, a chegares-te mais. A luz do candeeiro é menos intensa e, nesta meia sombra, podemos ver melhor os fantásticos bailados das chamas, ao som da música silenciosa do velho tronco a arder na lareira. Ajeita a manta no teu regaço e como em outros tantos tempos, bebe comigo esta velha aguardente doirada pelo sol, amarelecida pelos anos e pelas aduelas das pipas de carvalho. Como nós, foram envelhecendo, enriquecendo o que tinham dentro.
Os dias têm estado lindos, cheios de sol e muito frio, seco e agreste. Assim ficam as pessoas que diariamente têm de sair de casa, ainda noite escura ou quando é só madrugada.
Ao contrário de tudo isto, aí, no teu país, é Verão. Na vida, os sistemas estão em equilíbrio porque a memória é curta e os vectores se anulam ou compensam, à dor e à alegria, ao bem e ao mal, à noite e ao dia, ao verão e ao Inverno. Chego a pensar que só houve juventude, porque muito mais longo é o entardecer e a velhice. Paga-se caro, e durante toda uma vida, o que foi escandalosamente desperdiçado, durante um tempo que correu tão breve.
Assim também foi o nosso amor!
Lembro-me de uma vez me teres lido um dos mais belos poemas de Neruda, onde ele dizia: "como tan corto és el amor y tan largo el olvido!"[1]
Não há dúvida. Ele tinha razão.
Cruzámo-nos nos desencontros da vida ou, se quiseres, nas partidas que o destino os prepara. A meia laranja de cada um, encontrou a justa coincidência e "cada um de nós achou que achara o par que a carne e a alma lhe pedia. E cada um de nós sonhou que achara..." penso que assim disse José Régio, um Poeta mal amado, como são os Poetas no meu País de Poetas.
Enquanto pensávamos ou tentávamos racionalizar o que afinal não era mais do que sentimento inquantificável, por infinito, e indefinível por efémero, fomos perdendo o tempo.
Entrámos na realidade e, com ela, criamos nós o longe e a distância. Estávamos desatentos, ou a vida nos distraiu, ou fomos daltónicos no dia de aurora boreal.
A partida foi inevitável num qualquer cais, feito de pedras e saudade, que, por tanto recordar, se esfumou para sempre.
Agora, aqui ao pé do lume, sentadas entre nós, estão as recordações, as memórias e uma porção larga de silêncio, com um pingo de amargura. Há a enorme barreira que impede o torpor quente dos corpos e das almas.
Mesmo aqueles tempos em Espanha não nos foram muito propícios. As circunstâncias eram completamente adversas. Nem as tardes de sol e toiros e as esperanças do findar de um pesadelo, foram suficientes para amarrar o que nasceu livre.
É impressionante como aqui está frio!
O calor do fogo não chega para diluir o gelo em que se foram transformando as nossas vidas. Estamos definitivamente no Inverno. Há muito que foi Primavera. Chegou a parecer ser o Verão das nossas vidas e ser ele eterno!
Era também fria e húmida, aquela distante noite de Agosto, no país da carne, em tempo de açougue, quando em pleno bairro da Boca, arrimado ao rio da Prata, que separa mas não divide, ouvimos cantar, ou chorar, um tango. Como foi bom ouvir a Suzana Rinaldi cantar " Marlena canta el tango, la milongera"! A sua arte, feita de paixão e talento, expressiva e sentida, como o imortal Piazzolla! O tempo parecia parado e enternecido, quando escutávamos as "milongas" e as canções de luta, da Violeta Parra, da Mercêdes Sosa, da Soledad Bravo e do incomparável Atahualpa Yupanqui.
Bem de madrugada, quando a bruma desce no cais, terminámos a beber chocolate com churros, na pequena leitaria da Corientes, entre grelas[2] que, fumando e tossindo, derramavam a solidão pelos olhos tristes de eternas olheiras, depois da noite de trabalho, e os chulos, oblíquos e predadores, à procura do pecúlio do pecado, fumavam em silêncio.
Terminávamos a noite pelas tascas portenhas a comer peixe frito, acompanhado daquele vinho tinto do Chile, — "malgré tout"— memória da minha Pátria, ainda tão distante.
Nas noites húmidas de Buenos Aires reparámos que só as gentes do Sul — os gregos, os napolitanos, os marselheses, os andaluzes e os portugueses —, os povos das diferentes e permanentes diásporas, comem e gostam de peixe frito!
Foram esses, todos, os que criaram a tua caldeada cultura, a Pátria de passagem, do chegar para partir, mesmo numa partida eternamente adiada.
Foram esses os primeiros que cantaram ao som do bandonion, espelho do variável destino, da solidão amargada e sofrida, nas noites de sonho e de fantasmas.
Depois… foi mergulhar o olhar, serenamente, no lago dos teus olhos verdes, profundos como os abismos e límpidos como o ar dos Andes.
Foi tão bom dizer-te ao ouvido aquelas palavras loucas da Poeta Louca da minha terra, que queria "amar... amar... perdidamente!"
Parece que vem do pólo este vento "Sur".
É sempre o sinal de desgraça.
Vem violento e agreste, lambe e arrasa a pampa, regela as árvores, o gado e os homens. Marca as pedras e os gaúchos. Mas açoita mais forte os pobres — os que vivem em Palermo, o bairro dos arrabaldes da cidade grande. Sem qualquer pudor açoitou e fustigou, primeiro, os pobres, os deserdados do bairro sul, os "que tienen su alma vulcrada al sur"[3].
Agora percorre uivando, a nossa solidão e esta casa. Faz até vibrar os vidros das janelas.
Falta-me o teu "poncho" colorido. O mate[4] compartido que aquecíamos ao lume. O quente do teu hálito fresco. O cheiro do "assado"[5] que esturrica, mas fica por dentro em sangue.
Também pode ser culpa do fogo. Está-se apagando e com ele o feitiço desta noite fria.
Já nem sequer há chama!
As brasas morreram lentamente!

Toda a ternura e um beijo:
Bernardino Louro

[1] Como tão curto é o amor e tão grande o esquecimento
[2] Termo em Lunfardo, calão portenho, da cidade de Buenos Aires: prostitutas
[3] Os que têm a sua alma virada ao sul
[4] Infusão de ervas das pampas
[5] Carne grelhada no braseiro

By Bernardino Louro , escritor e meu amigo, que acedeu deleitar-nos de vez em quando com os seus escritos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Os amigos dos nossos amigos nossos amigos são...
Bem-vindo ao nosso blog.Honra nossa!!
Gélica

Anónimo disse...

Gostei do texto.
Este Senhor pode vir mais veses ao
Blog,escreve muito bem.
Helder,foi uma boa escolha.
OLD

Anónimo disse...

Honra e deleite.Apareça sempre.