Sempre que tenho disposição, passo alguns momentos de descanso, quando não durmo, a actualizar a leitura.
Nestes últimos tempos, após ter devorado o romance de Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores, em que o comportamento e vida de uma família alentejana são dissecados durante o conturbado período da primeira metade do século XX, nos países onde os seus membros vão desenvolvendo as suas actividades - Portugal, Espanha, França e Brasil, dedico-me a relembrar a minha vivência da guerra colonial lendo uma obra, Braço Tatuado, dum escritor açoreano, de seu nome Cristovão de Aguiar, que relata a sua experiência traumatizante de dois anos de guerra na Guiné.
Não é directamente sobre aspectos específicos da guerra que eu desejo evidenciar, neste caso.
Desejo transcrever, com a devida vénia, a carta recebida por um soldado, enviada pelos seus pais, relatando o ponto de situação do seu namoro, constante do livro em apreço.
Quantas não terão sido as cartas de teor idêntico escritas por pais, irmãos e amigos ?
E todas pelos mesmos motivos: Afastamento, incerteza e guerra.
E o Amor? Onde estava o Amor?.
"Nosso querido filho: estimamos todos que esta te vá encontrar de perfeita saúde sem guerras de maior que nós por cá ficamos à conta de Deus na forma do costume cada vez mais velhos e cansados tua irmã é que tem sido o nosso amparo é ela que tem cuidado sòzinha da fazenda da Barroca que eu e a tua mãe temos andado adoentados mais ela do que eu até caiu à cama de desgosto não era nossa tenção mandar-te dizer nada disto bem basta atua consumição nessa guerra do diabo mas mais cedo ou mais tarde tinhas de ficar ao corrente de tudo o que se passou e para sempre está passado para sempre graças a Deus o que é preciso agora é força de ânimo e alma até almeida tens que pôr tudo para trás das costas sabemos que custa mas a rapariga que namoravas esa Lena da Maria Calva roeu-te a corda a grande galdéria anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo aquele que está para a França veio cá de visita à Senhora da Piedade e corre pelo povo que se vão casar breve que Deus o proteja e a ti te dê muitas forças para te aguentares com este coice desta grande mula sabida e mais finória que as cabras ladras do Manuel Cabreiro coração ao alto que mulheres não te hão-de faltar trata agora de ti que logo se apalavra outra para quando cá chegares a fulaninha da Calva ficar sabendo quem tu és há-de arranjar-se uma que seja séria isto tem sido uma pouca vergonha cá pela nossa terra ele são casadas e solteirasa enfeitar as testas dos maridos e namorados ausentes em França, na guerra
e noutras europas desta vida ainda bem que com esta Lena foi o namoro que se desmanchou podia ser pior..."
3 comentários:
Isso era o pão nosso de cada dia , naquela maldita guerra e quando os os soldados não sabiam ler e quem lhe lia as cartas tinha que lhe dar essa informação , imaginai...
Aliás os "pretos" eram mais praticos , davam a notícia da seguinte maneira : "tua mulher está grávida doutro ...
Conheci o autor, ainda na faculdade, no seu regresso de África e falámos a última vez na festa de jubilação do Prof. Paulo Quintela em Coimbra.
A leitura trouxe-me ao pensamento o Auto da India de Gil Vicente que está directamente relacionado com o tema . Mas as personagens da carta são feitas do mesmo material das da peça "Terra Firme",de M. Torga, que foi representada no nosso 1º de Dezembro: a mesma capacidade de resistência perante qualquer que seja a adversidade que os aflige. Não sei como continua a história vertente, mas o IT no-lo dirá mais tarde. Continuação de boa leitura.
Mais tarde, não. Pode ser já, pois já terminei o livro e pude constatar que o destino do soldado
Niza não poderia ter sido outro, depois de ter gravado no seu braço, uma tatuagem com um coração trespassado com uma seta e uma legenda que dizia AMOR DE LENA:
Enlouqueceu,quiz matar todos os seus camaradas de armas, foi evacuado para o hospital e lá , suicidou-se!
A resistência era efectivamente grande, mas quando deixava de existir a esperança acalentada de satisfazer os desejos do coração,
a pressão da guerra ditava as suas leis, especialmente, naqueles mais ciosos dos seus nobres sentimentos
do amor.
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