XIII
Já não se vê o trigo,
a vagarosa ondulação dos montes.
Não se pode dizer que fossem contigo,
tu só levaste esse modo
infantil de saltar o muro,
de levar à boca
um punhado de cerejas pretas,
de esconder o sorriso no bolso,
certa maneira de assobiar às rolas
ou então pedir um copo de água,
e dormir em novelo,
como só os gatos dormem.
Tudo isso eras tu, sujo de amoras.
Eugénio de Andrade,
Branco no branco
1. Introdução: Este poema começa por uma observação bem concreta: já não se vê o trigo, seguida de um aposto: a vagarosa ondulação dos montes.
Na realidade, perante uma seara, que é que nós vemos? A seara em si mesma, ou a ondulação sob a qual ela se nos revela?
2. O nó da narrativa: E porque é que se não vê já essa vagarosa ondulação? Será que terá partido contigo?
3. O desenvolvimento, ou a solução do nó: O poema reconstitui, então, os traços marcantes do ausente: contigo partiu esse modo infantil, ondeante, de saltar o muro – contigo desapareceu o modo de levar à boca um punhado de cerejas e, também, com a tua ausência, se esvaiu aquela tua imagem de gato dormindo em novelo...
Estamos, indiscutivelmente, perante um poema amoroso, típico de Eugénio de Andrade: sugere, não descreve; faz um traço – e empurra-nos para que nos detenhamos na reconstrução e contemplação do quadro sugerido.
Para Eugénio de Andrade a Poesia consiste em sugerir e partilhar.
E, de facto, também nós pensamos que só é poeta quem for capaz de ser claro a sugerir e generoso a partilhar. O artista só o é com os outros.
VCD
1 comentário:
E muito sugere ele...
A imagem do gato aninhado comparado com o garoto sujo de amoras é uma delícia!
Abraço
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