Uma das mais bonitas cartas que recebi na minha vida era da tia Carolina. Eu tinha feito anos e ela escrevera-me a contar a felicidade que sentira, num dia sufocante do mês de Julho, em plenos exames, ao receber um telegrama de Lisboa, de seu irmão Francisco: "NASCEU MENINA. MÃE E FILHA BEM".
Como imaginais, li a carta com os olhos rasos de água: admiravelmente bem escrita, repassada de afecto, traduzia em absoluto o carinho que sentia pela sua sobrinha primogénita. Querida tia Carolina, como gosto de a recordar aqui convosco...
Também ela era a primogénita dos meus avós paternos. Meu avô, "talassa", sidonista, andou fugido por Espanha nos tempos da I República, e lá conheceu uma guapa que foi mãe dos seus 7 filhos e minha saudosa avó. A mais velha - a quem a criada da casa, oriunda da Lombada e sensível ao seus traços finos e aos seus modos dóceis, saborosamente chamava "a fidalguita" (ao meu pai, chamava "o gandulico"...eheheh) - nasceu ainda em Espanha, em casa de seu avô Pedro. Deram-lhe o nome de Carolina.
Naquele tempo, a filha mais velha era destinada desde cedo a "fazer o caldo" e a tomar conta dos irmãos mais novos. Depois a ficar solteira e a tomar conta da casa, e finalmente a cuidar dos pais velhos. Mas meu avô tinha outras ambições para a sua menina. Vendo-a inteligente e trabalhadora, cedo se convenceu de que valia a pena pô-la a fazer estudos superiores. E assim foi. Depois, já professora, o ajudaria na educação dos irmãos.
Até aos meus doze anos, a tia Carolina foi presença quase diária que me despertava sentimentos contraditórios. Se por um lado era estimulante, porque me ensinava tanta coisa e punha tantos livros à minha disposição, por outro obrigava-me a rezar o terço todas as noites e controlava tudo o que eu lia. Lembro-me que um dia me tirou das mãos "O Bem e o Mal" de Camilo Castelo Branco porque "descrevia um rapto"...Hoje rio-me à gargalhada, quando penso nestas suas idiossincrasias, nas suas proverbiais distracções, na sua falta de jeito para cozinhar, no seu modo sonhador de encarar a vida. Querida tia Carolina...
No Liceu, foi sempre minha professora de Português. A ela devo o gosto pela leitura, pelo romance, pela poesia, pela descoberta da Língua. Devo o ter ficado encantada com a Mitologia clássica n'Os Lusíadas, até o divertir-me com esse bicho de sete cabeças que era a análise sintáctica: tornava-se um jogo, uma tentativa de encaixar as peças dum puzzle que ajudava a encontrar um sentido no intrincado das estrofes de Camões. Tudo isto, apesar de nunca conseguir manter a disciplina nas suas aulas. Mas nós todos, alunos dela, sabíamos bem o que ela valia! E sabíamos como ela se interessava por nós.
Há dez anos, durante a Expo 98, esteve em minha casa. Andava alegre, entusiasmada. Dois dos meus primos levavam-na quase todas as noites para a Expo, e aparecia-me em casa à desora! Foram os últimos tempos em que esteve completamente bem. Passados uns meses já não era a mesma: o seu cérebro, toda a vida activo e arguto, dava sinais de cansaço e degenerescência.
Pobre querida tia Carolina, perdi-a de vez no passado Domingo de Páscoa. Resta-me lembrá-la aqui convosco e em todas as memórias que guardo comigo.
Obrigada a todos vós que estivestes comigo, no enterro em Bragança ou aqui no blogue. Obrigada do fundo do coração.
Como imaginais, li a carta com os olhos rasos de água: admiravelmente bem escrita, repassada de afecto, traduzia em absoluto o carinho que sentia pela sua sobrinha primogénita. Querida tia Carolina, como gosto de a recordar aqui convosco...
Também ela era a primogénita dos meus avós paternos. Meu avô, "talassa", sidonista, andou fugido por Espanha nos tempos da I República, e lá conheceu uma guapa que foi mãe dos seus 7 filhos e minha saudosa avó. A mais velha - a quem a criada da casa, oriunda da Lombada e sensível ao seus traços finos e aos seus modos dóceis, saborosamente chamava "a fidalguita" (ao meu pai, chamava "o gandulico"...eheheh) - nasceu ainda em Espanha, em casa de seu avô Pedro. Deram-lhe o nome de Carolina.
Naquele tempo, a filha mais velha era destinada desde cedo a "fazer o caldo" e a tomar conta dos irmãos mais novos. Depois a ficar solteira e a tomar conta da casa, e finalmente a cuidar dos pais velhos. Mas meu avô tinha outras ambições para a sua menina. Vendo-a inteligente e trabalhadora, cedo se convenceu de que valia a pena pô-la a fazer estudos superiores. E assim foi. Depois, já professora, o ajudaria na educação dos irmãos.
Até aos meus doze anos, a tia Carolina foi presença quase diária que me despertava sentimentos contraditórios. Se por um lado era estimulante, porque me ensinava tanta coisa e punha tantos livros à minha disposição, por outro obrigava-me a rezar o terço todas as noites e controlava tudo o que eu lia. Lembro-me que um dia me tirou das mãos "O Bem e o Mal" de Camilo Castelo Branco porque "descrevia um rapto"...Hoje rio-me à gargalhada, quando penso nestas suas idiossincrasias, nas suas proverbiais distracções, na sua falta de jeito para cozinhar, no seu modo sonhador de encarar a vida. Querida tia Carolina...
No Liceu, foi sempre minha professora de Português. A ela devo o gosto pela leitura, pelo romance, pela poesia, pela descoberta da Língua. Devo o ter ficado encantada com a Mitologia clássica n'Os Lusíadas, até o divertir-me com esse bicho de sete cabeças que era a análise sintáctica: tornava-se um jogo, uma tentativa de encaixar as peças dum puzzle que ajudava a encontrar um sentido no intrincado das estrofes de Camões. Tudo isto, apesar de nunca conseguir manter a disciplina nas suas aulas. Mas nós todos, alunos dela, sabíamos bem o que ela valia! E sabíamos como ela se interessava por nós.
Há dez anos, durante a Expo 98, esteve em minha casa. Andava alegre, entusiasmada. Dois dos meus primos levavam-na quase todas as noites para a Expo, e aparecia-me em casa à desora! Foram os últimos tempos em que esteve completamente bem. Passados uns meses já não era a mesma: o seu cérebro, toda a vida activo e arguto, dava sinais de cansaço e degenerescência.
Pobre querida tia Carolina, perdi-a de vez no passado Domingo de Páscoa. Resta-me lembrá-la aqui convosco e em todas as memórias que guardo comigo.
Obrigada a todos vós que estivestes comigo, no enterro em Bragança ou aqui no blogue. Obrigada do fundo do coração.
8 comentários:
Teresa,só tu para descrever, tão bem,o que todos os que conheceram a D.Carolina sentem quando se lembram dela.Bem haja!
Gélica
Parabéns pelo texto à aluna de tão excelente professora, que conheci nas excursões do liceu como pessoa muito bem disposta e divertida e de quem, anos depois, tive a sorte de ser aluno de Literatura Portuguesa.E num curto exercício de reflexão,à distância destas décadas, o que melhor evoco são as aulas de poesia,as cantigas medievais, o Gil Vicente,Bernardim e Camões, Antero e já com sabor a despedida, Eugénio de Castro...e as reticências à leitura de algum Eça(!).Lembro-me do entusiasmo da Dra.Carolina a ler numa aula um trecho da "Batalha do Salado" em português medieval.Além de ter sido seu colega no meu 1ºano de trabalho, tive o prazer de a reencontrar ao longo dos anos ,a última das quais numas férias grandes numa exposição de pintura no Museu Abade de Baçal.Nesta Páscoa, voltei a Bragança e tive a oportunidade de me despedir.Ficam as boas lembranças .
O comentário anterior está tão bom
que merecia ser assinado.
Teresa.Que excelente texto.
Dá vontade de ler mais sempre mais.
Gostei imenso.Por isso vem mais
vezes ao blog.
Quanto á Dª. Carolina era minha
distinta cliente no Banco.
Conversavamos sempre um bocado bom.
Mas é a vida .Chegou a hora de nos
deixar,com muita pena nossa. PSA.
Bartolomeu
Também tinha muito gosto em saber quem é o anónimo que conheceu bem a tia Carolina...
Também eu ...
Oh gentes, lá voltei a ser vítima da minha inaptidão bloguista!Não quis ser anónimo, mas saiu assim.Peço desculpa uma vez mais. mc
Que engraçado!! eu li e nem vi que era dum anónimo..para mim foi como se estivesse lá MC.
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